segunda-feira, 18 de novembro de 2013

De desporto, autoconfiança, artes marciais e violência

Na minha infância, na casa dos meus pais, o desporto sempre foi muito importante. O meu pai sempre jogou futebol desde que se lembra, ajudou a fundar o clube de futebol da sua terra, foi aí jogador e, mais tarde, acabou por ser também treinador. Continua ligado ao clube até hoje. Fez também ioga e meditação com franciscanos holandeses enquanto andou pelo seminário. 
O meu irmão entrou em competições de atletismo ainda muito novo, com pouco mais de 12 anos, se bem me lembro. Ele era velocista: corria os 100 metros livres e os 100 metros barreiras brilhantemente, para além do salto em comprimento. Recebeu algumas medalhas em campeonatos nacionais e internacionais, muitas já como atleta federado. Licenciou-se em Ciências do Desporto e é hoje professor de Educação Física, juntamente com a esposa. 
Quanto a mim, odiava correr, especialmente longas distâncias. Não é que eu fosse particularmente má, simplesmente preferia treinos de força: lembro-me de conseguir a melhor marca da turma em lançamento do peso e adorava fazer abdominais. As corridas, os jogos de grupo e, principalmente, as competições, eram um pesadelo. Com 14 anos, na falta de outras actividades com que ocupar os tempos livres, e convencida de que a prática de uma arte marcial me ajudaria a defender-me, inscrevi-me nos treinos de Taekowndo. 


O Taekowndo é, como quase todas as artes marciais, uma filosofia de vida de raízes orientais - neste caso coreana -, que junta o treino físico ao treino da mente, com exercícios que vão desde a respiração e a concentração (meditação) aos combates e testes de quebra. Com a prática também conseguimos adquirir algumas palavras de coreano, indispensáveis para passar de nível e mudar a cor do cinto. Quem viu os filmes do Karate Kid consegue ter uma ideia (sem os cenários românticos dos templos budistas à mistura e tendo em atenção que o Caraté é bastante diferente do Taekowndo). Há corrida, treinos de resistência, força, equilíbrio e velocidade, mas o que eu mais gostava nos treinos eram os exercícios de flexibilidade, onde eu era razoavelmente boa (as raparigas geralmente são melhores nisso), e as hyong's (taeguks ou pumsaes ou poomsaes), que são as sequências de movimentos de defesa e ataque que parecem verdadeiros exercícios de dança coreografados. Muito parecidos com Tai-chi, na minha opinião. Durante a minha passagem pelo Taekowndo fiz alguns combates que me valeram algumas medalhas.


Há tempos publiquei no mural do meu Facebook uma foto de um diploma meu de campeã nacional de séniores femininos, que ganhei quando ainda era júnior, com 16 anos. Muitas pessoas ficaram surpreendidas. Promovendo-me eu pacifista, com uma calma aparente, de fazer irritar aqueles que parecem viver a mil à hora num frenesim diário, e repudiando todas as formas de violência, é difícil explicar a razão pela qual fui atleta de artes marciais. Mas a razão é simples, no entanto: eu queria saber defender-me. Esse era o meu primeiro objectivo quando me federei. Na verdade, é difícil explicar a alguém que nunca praticou artes marciais a relação entre elas e a violência. Como me foi dito vezes sem conta nos treinos, o Taekowndo - e assumo que o mesmo se aplica às restantes artes marciais - tem muito pouco a ver com violência. É uma arte de defesa e não de ataque. António Medeiros consegue explicar este aparente paradoxo com o excerto seguinte:
"No sector das Artes Marciais, a expressão de violência mais acessível são as competições de combates. Estes, por sua vez, são um mal necessário, pois, embora contrariando o espírito marcial, foram um importante meio de divulgar as Artes Marciais. Mas a verdade é que uma arte marcial não incrementa a violência. Esta actividade tende a confiná-la dentro de mentes sadias e fortes, através de um treino que leva o indivíduo a uma grande autoconfiança e serenidade. […] Todos os praticantes, ao iniciarem a sua prática de Taekwon-Do, são ensinados a usarem as técnicas desta arte marcial somente em último caso."
António Medeiros (2001). Taekown-Do Hyong. Porto: Plátano Edições Técnicas, p. 392
O Taekowndo tem muito de ioga e meditação (creio que foi o Taekwondo que me ensinou a gostar de ioga até hoje) e, para os verdadeiros mestres, é uma verdadeira filosofia de vida. 
Eu nunca tive de usar as tácticas de defesa pessoal do Taekowndo na vida fora dos treinos. De qualquer forma, convém ter em mente que as situações em que alguém de constituição física mais frágil consegue sair vencedor numa situação limite de confronto físico só acontecem nos filmes hollywoodescos. Haruki Murakami consegue retratar esse ponto de forma brilhante e contundente no seu livro 1Q84:
"Na opinião de Aomame, se uma mulher não fosse capaz de desferir um pontapé valente nos tomates de um tipo ao ser atacada por ele, pouco mais poderia fazer. Era praticamente impossível safar-se, no meio de um combate a sério, recorrendo à técnica sofisticada que consistia em agarrar o adversário pelo braço e torcê-lo atrás das costas. Isso só acontecia nos filmes; na vida real era diferente. "
Haruki Murakami (2009). 1Q84. Alfragide: Casa das Letras, p. 216
Não há muito mais a acrescentar aqui. Tendo dito isto, o Taekowndo - e creio que todas as restantes artes marciais em geral - ultrapassa a questão da defesa pessoal. Ele fornece princípios e valores fundamentais para a vida, tal como o fazem todos os tipos de desporto. Por isso, hoje, sendo mãe de uma menina de 9 anos e casada com um cinturão negro e antigo mestre de Jiu-jitsu, os princípios do Taekwondo - cortesia, integridade, perseverança, autodomínio e coragem (ou espírito indomável) - continuam a ser valores importantes para passar adiante. 
É possível que a Carol não consiga sair vencedora de uma situação limite de confronto físico, mas esse não é o objectivo. As artes marciais, e sei que posso dizer isto de todos os tipos de desporto, são mais do que isso. Dão-nos auto-estima e confiança para ir para o tatame e vencer o nosso parceiro de luta, contra todas as evidências em contrário. Dão-nos resiliência e força.  Ajudam-nos a conhecer o nosso corpo e a nossa mente, a decidir sobre o que fazer em cada uma das situações do dia-a-dia e, se assim for necessário, a aceitar a derrota. E pode bem acontecer que, estando nós preparadas, derrotemos o adversário pelo elemento surpresa. :)

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